Público poderá interagir com Fyodor Pavlov-Andreevich em 'Prove-me sou como você', no Sesc Consolação
Text by Nelson Gobbi, 25.10.2017
RIO — No centenário da Revolução Russa, um Lênin muito diferente do imaginário ficou exposto por cinco dias no Solyanka State Gallery, museu voltado à performance em Moscou. O artista russo e diretor da instituição Fyodor Pavlov-Andreevich, que desde 2008 se divide entre Moscou, Rio, São Paulo e outras cidades do mundo por onde viaja com seu trabalho, permanece deitado nu, por horas, representando o corpo do líder bolchevique na performance "Prove-me eu sou você" em seu mausoléu. Em seu novo trabalho, o performer convida o público a interagir com o seu corpo, que atua como um instrumento musical: quanto mais intenso é o toque, mais alta a música. A performance chega ao Brasil a partir do dia 6 de novembro, no Sesc Consolação, em São Paulo, com trilha composta por Arto Lindsay e o coletivo internacional Atelier Playtronica, com a possibilidade de estrear também no Rio de Janeiro em 2018. A apresentação faz parte do projeto "Carrossel performático", que conta com a participação de outros sete performers (Jamie Lewis Hadley, PASHIAS, Rafael Menôva, Anguezomo Mba Bikoro, Evamaria Schaller, Clarissa Sacchelli e Guta Galli) selecionados pelo próprio russo.
— Durante a performance, o corpo deixa de ser meu e passa a ser uma obra de arte. Em um museu, não se pode tocar em pinturas ou escultura, a performance é uma das únicas possibilidades artísticas em que a interação com o público não só é permitida como passa a ser parte da própria obra — observa Fyodor, em entrevista por telefone, de Moscou. — O resultado da performance aqui foi incrível, o público reagiu de forma totalmente imprevisível. Estou muito ansioso para levar o trabalho para São Paulo, porque o público será mais amplo. Como o museu daqui é voltado à performance, o público já sabe o que esperar.
O artista não teme reações mais extremadas por parte do público, após os recentes incidentes envolvendo eventos como a exposição "Queermuseu", cancelada em Porto Alegre, ou a performance "La bête", em que uma criança interagiu com o performer Wagner Schwartz, que estava nu, no MAM-SP. No Sesc Consolação, a classificação indicativa a ser adotada será de 16 anos, com explicações sobre o conteúdo de todas as performances antes da entrada.
— Queremos trabalhar estas questões, abrir este diálogo com o público. Esse tipo de cerceamento de liberdade de expressão não é exclusivo do Brasil. Na Rússia também tivemos vários problemas assim, também acontece em outros países da Europa e nos Estados Unidos. A performance tem essa característica, de levantar questões, de ajudar as pessoas a buscarem respostas — explica o artista.
Curadora das performances de Fyodor, Ana Avelar acredita que, pelo momento de ânimos exaltados, a performance possa gerar novos debates, mas vê também a possibilidade de alcançar o público de outra forma.
— É curioso, porque ano passado o Fyodor fez uma performance nu no mesmo MAM e não houve nenhuma polêmica neste sentido. Sabemos que, neste momento, alguns setores da sociedade deslocam o foco das atenções para as artes, como arma de campanha política. Mas isso também oferece uma possibilidade de debater alguns destes temas tabus, porque estão todos escancarados. E, no "Carrossel", o público terá uma aproximação única com os artistas, eles se colocam no limite físico para estabelcer este contato com o espectador — destaca Ana.
Para a curadora, um dos aspectos que mais inflamou os ânimos no caso da performance de Schwartz, é justamente um dos elementos que o russo trabalha em sua performance: a condenação do nu masculino.
— Se fosse uma mulher nua no MAM-SP, a repercussão seria diferente, porque o corpo feminino é objetificado, é como se ele fosse público. Já o corpo masculino é a representação do poder, e quando um homem se desnuda e se coloca vulnerável diante do público, a sociedade não aceita — compara Ana. — A performance atua justamente para desestabilizar estas regras sociais. Estes trabalhos colocam às claras como nós somos permissivos com um certo tipo de nudez, mas condenamos a nudez dentro de um espaço específico.
Fyodor também usa o corpo para chamar atenção para outras questões. Em "A criança abandonada", o artista "doa" seu corpo em uma caixa de vidro em eventos de gala, como o jantar da Bienal de Arte de São Paulo (2016) e o Met Gala em Nova York deste ano, no qual o russo acabou detido e recebendo quatro acusações criminais. Em "Monumentos temporários", ele permaneceu por sete horas pendurado em um guindaste no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP para abordar a escravidão contemporânea. Um tema que ganha nova dimensão no Brasil, após a tentativa do Ministério do Trabalho de alterar as regras para caracterização de trabalho análogo ao escravo, cuja portaria foi suspensa pelo STF.
— A Rússia tem hoje cerca de quatro milhões de escravos, muitos vindos de ex-repúblicas soviéticas, como o Uzbequistão, Tadjiquistão e o Quirguistão. São pessoas que vivem e trabalham em condições degradantes, para enviar dinheiro para a família, e que reconhecem sua condição. No Brasil, muitas vezes as pessoas nesta situação não conseguem nem mesmo se perceber assim — comenta Fyodor. — Muitas vezes questões como trabalhos degradantes ou o racismo passam a ser incorporadas pela sociedade sem que as pessoas notem isso no dia a dia, para quem vem de fora fica mais evidente.
A propriedade com que aborda temas centrais do país é mais uma evidência dos laços criados por Fyodor há quase uma década com o Brasil:
—Passo cerca de 30 por cento do meu tempo dividido entre Moscou, Rio e São Paulo, e no restante viajo pelo mundo com minhas obras, preciso levar meu corpo onde vou trabalhar. Mas hoje me considero mais brasileiro do que russo. É como uma pessoa que sente que nasceu no corpo errado, cada vez mais percebo que esta é a minha cultura, o meu povo.